domingo, 10 de novembro de 2013

CAPITULO 3 DA HISTÓRIA DA RIQUEZA DO HOMEM DE LÉO HUBERMAN


CAPÍTULO III



RUMO À CIDADE

À medida que o riacho irregular do comércio se transformava em corrente caudalosa, todo pequeno broto da vida comercial agrícola e industrial recebia sustento, e florescia todos efeitos mais importantes do aumento no comércio foi o crescimento das cidades. Sem dúvida, havia certo tipo de cidades antes desse aumento no comércio, os centros militares e judiciais do país, onde se realizavam os julgamentos e onde havia bastante movimento. Eram realmente cidades rurais, sem privilégios especiais ou governo que as diferenciassem. Mas as novas cidades que se desenvolveram com a intensificação do comércio, ou as antigas cidades que adotaram uma vida nova sob tal estímulo, adquiriram um aspecto diferente.

Se é de fato que as cidades crescem em regiões onde o comércio tem uma expansão rápida, na Idade Média temos de procurar cidades em crescimento na Itália e Holanda. E é exatamente onde elas surgiram primeiro. À medida que o comércio continuava a se expandir, surgiam cidades nos locais em que duas estradas se encontravam, ou na embocadura de um rio, ou ainda onde a terra apresentava um declive adequado. Tais eram os lugares que os mercadores procuravam. Neles, além disso, havia geralmente uma igreja, ou uma zona fortificada chamada "burgo" que assegurava proteção em caso de ataque. Mercadores errantes descansando nos intervalos de suas longas viagens, esperando o degelo de um rio congelado, ou que uma estrada lamacenta se tornasse transitável outra vez, naturalmente se deteriam próximo aos muros de uma fortaleza, ou à sombra da catedral. E como um número cada vez maior de mercadores se reunia nesses locais, criou-se um "fauburg" ou "burgo extramural". E não demorou muito para que o arrabalde se tornasse mais importante do que o próprio burgo antigo. Logo, os mercadores dessa povoação, em seu desejo de proteção construíram à volta de sua cidade muros protetores que provavelmente se assemelhavam às paliçadas dos colonos americanos. Em conseqüência, os muros mais velhos se tornaram desnecessários e ruíram aos pedaços. O burgo mais antigo não se expandiu exteriormente, mas se viu absorvido pela povoação mais nova, onde os fatos se sucediam. O povo começou a deixar suas velhas cidades feudais para iniciar vida nova nessas ativas cidades em progresso. A expansão do comércio significava trabalho para maior número de pessoas e estas afluíam à cidade, a fim de obtê-lo. Atente bem o leitor, porém, que não sabemos se o relato acima é verdadeiro. Trata-se apenas de conjeturas de certos historiadores, em particular Henri Pirenne, cujo levantamento de indícios para demonstrar o modo pelo qual as cidades da Idade Media se devenvolveram é tão fascinante como qualquer história de detetive. Uma de suas provas de que o mercador e o habitante da cidade constituíam uma única e mesma pessoa é o fato de que, logo no início do século XII, a palavra "mercator", significando mercador, e "burgensis", significando aquele que vive na cidade, eram usadas alternadamente.

Ora, se recapitularmos o estabelecimento da sociedade feudal, veremos que a expansão do comércio, trazendo em conseqüência o crescimento das cidades, habitadas sobretudo por uma classe de mercadores que surgia, logicamente conduziria a um conflito. Toda a atmosfera do feudalismo era a da prisão, ao passo que a atmosfera total da atividade comercial na cidade era a da liberdade. As terras da cidade pertenciam aos senhores feudais, bispos, nobres, reis. Esses senhores feudais, a princípio, não viam diferença entre suas terras na cidade e as outras terras que possuíam. Esperavam arrecadar impostos, desfrutar os monopólios, criar taxas e serviços, e dirigir os tribunais de justiça, tal como faziam em suas propriedades feudais. Mas isso não poderia acontecer nas cidades. Todas essas práticas eram feudais, baseadas na propriedade do solo, e tinham de ser modificadas, no que se relacionasse às cidades. As leis e a justiça feudais se achavam fixadas pelo costume e eram difíceis de alterar. Mas o comércio, por sua própria natureza, é dinâmico, mutável e resistente às barreiras. Não se podia ajustar à estrutura feudal. A vida na cidade era diferente da vida no feudo e novos padrões tinham que ser criados.

Pelo menos, os mercadores assim julgaram. E o pensamento, com esses comerciantes audazes, foi logo traduzido em ação. Eles aprenderam a lição de que a união faz a força. Quando viajavam pelas estadas, juntavam-se para se proteger contra os salteadores; quando viajavam por mar, associavam-se para se proteger contra os piratas; quando comerciavam rios mercados e feiras. aliavam-se para concluir melhores negócios com seus recursos aumentados. Agora, face a face com as restrições feudais que os asfixiavam, mais uma vez se uniram, em associações chamadas "corporações" ou "ligas", a fim de conquistar para suas cidades a liberdade necessária a expansão contínua. Quando conseguiam o que queriam, sem luta, contentavam-se; quando tinham que lutar para alcançar o que desejavam, lutavam.

O que desejavam eles, especificamente? Quais as exigências desses mercadores nessas cidades em crescimento? Em que aspectos seu mundo em alteração se chocava frontalmente com o mundo feudal mais antigo?

A população das cidades queria liberdade. Queria ir e vir quando lhe aprouvesse. Um velho provérbio alemão, aplicável a toda a Europa ocidental, Stadtlujt macht frei ("O ar da cidade torna um homem livre"), prova que obtiveram o que almejavam. Tão real era esse provérbio que muitas constituições de cidades, dos séculos XII e XIII, continham uma cláusula, semelhante à que se segue, conferida à cidade de Lorris pelo Rei Luís VII, em 1155: "Quem residir um ano e um dia na paróquia de Lorris, sem que qualquer reclamação tenha sido feita contra ele, e sem que se tenha recusado a nos submeter sua causa, ou a nossa preboste, pode aí permanecer livremente e sem ser molestado." Se Lorris e as demais cidades possuíssem a técnica de anúncios de beira de estrada do século XX, poderiam ter usado um letreiro como este: Venha a Lorris e seja LIVRE.

As populações das cidades desejavam algo mais que a liberdade: desejavam a liberdade da terra. O hábito feudal de "arrendar" a terra de Fulano que, por sua vez, a arrendava de Beltrano, não era de seu agrado. O homem da cidade via a terra e a habitação sob um prisma diferente do senhor feudal. O homem da cidade poderia, de repente, precisar de algum dinheiro para inverter em negócios, e gostava de pensar que podia hipotecar ou vender sua propriedade para obtê-lo, sem pedir permissão a uma série de proprietários. A própria escritura pública de Lorris tratava do assunto, nestes termos: "Qualquer cidadão que desejar vender sua propriedade terá o privilégio de fazê-lo." Basta recordar o sistema de administração da terra descrito no primeiro capítulo para verificar quantas modificações se produziram com o comércio e as cidades.

As populações urbanas desejavam proceder a seus próprios julgamentos, em seus próprios tribunais. Eram contrárias às cortes feudais vagarosas, que se destinavam a tratar dos casos de uma comunidade estática, e totalmente inadequadas aos novos problemas que surgiam numa cidade comercial dinâmica. Que sabia, por exemplo, um senhor feudal sobre hipotecas, letras de crédito, ou jurisprudência de negócios em geral. Absolutamente nada. E, de qualquer modo, se soubesse tudo isso, é mais que certo que se utilizaria de seus conhecimentos e posição em benefício próprio, não em favor do homem da cidade. As populações urbanas queriam estabelecer seus próprios tribunais, devidamente capacitados a tratar de seus problemas, em seu Interesse. Queriam, também, elaborar sua própria legislação criminal.

Manter a paz nas pequenas aldeias feudais não se comparava ao problema de manter a paz na cidade em desenvolvimento, com maiores riquezas e população móvel. A população urbana conhecia o problema como o senhor feudal não conhecia. Queria sua própria "paz da cidade".

As populações das cidades desejavam fixar seus impostos, à sua maneira, e o fizeram. Opunham-se à municipalidade dos impostos feudais, pagamentos, ajudas e multas, que eram irritantes, e num mundo em evolução apenas servia para aborrecer. Desejavam empreender negócios e, assim, empenharam-se em abolir as taxas, de qualquer tipo, que as tolhessem. Se porém, falharam no objetivo de suprimir, totalmente, esses direitos, alcançaram o maior êxito em modificá-los, de uma forma ou de outra, para que se tornassem mais aceitáveis. A liberdade das cidades não era, normalmente, concedida de uma só vez, mas pouco a pouco. A princípio, o senhor vendia parte de seus direitos aos cidadãos, depois vendia mais uma parcela e assim sucessivamente, até que a cidade acabava por ficar praticamente independente de seu domínio. Isto, ao que parece, ocorreu na cidade alemã de Dortmund. Em 1241, o Conde de Dortmund vendeu aos cidadãos alguns de seus direitos feudais na cidade: "Eu, Conrad. Conde de Dortmund, e minha esposa, Giseltrude, e nossos legítimos herdeiros vendemos... ...aos cidadãos e cidade de Dortmund, nossa casa, situada ao lado da praça do mercado... ...que lhes deixamos completamente em perpetuidade, juntamente com os direitos, que conservamos do Sagrado Império Romano, de matadouros e oficinas de sapateiros remendões, de padaria e da casa sobre o tribunal, pelo preço de dois dinares pelo matadouro, e também dois dinares pelas oficinas dos sapateiros remendões e, pela casa do forno e casa sobre o tribunal, uma libra de pimenta, que serão pagos anualmente." Oitenta anos mais tarde outro Conde Conrad cedeu, por aluguel anual, "ao conselho e cidadãos de Dortmund, para seu poder exclusivo, metade do condado de Dortmund", que incluía os tribunais, direitos de portagem, impostos e rendimentos, e tudo dentro dos muros da cidade, à exceção da própria casa do conde, seus escravos pessoais e a Capela de São Martinho.

É de supor que os bispos e senhores feudais tenham percebido que ocorriam mudanças sociais de grande importância. É de supor que alguns tenham reconhecido ser impossível barrar o caminho dessas forças históricas. Alguns deles o fizeram, outros não. Alguns bastante espertos para sentir o que ocorria, procuraram tirar o melhor partido da situação e saíram-se bem. Isso porém nem sempre se fez praticamente. Parece fato, através da história, que os donos do poder, os abastados, se utilizarão sempre de quaisquer meios para manter o que possuem. O cão luta por seu osso. E, em muitos casos, os senhores feudais e bispos (particularmente os bispos) ferravam os dentes em seus ossos e não os largavam até que se vissem a isso forçados, pela violência das populações das cidades. Para alguns, não se tratava apenas de se agarrar a seus antigos privilégios, unicamente pelas vantagens que usufruíam. Como ocorre com freqüência na história, muitas dessas pessoas abastadas imaginavam sinceramente que, se as coisas não permanecessem como estavam, loco o sistema social desmoronaria. E como as populações das cidades não acreditavam nisso, muitas cidades só conquistaram sua liberdade depois que a violência irrompeu. Esse fato parece provar a veracidade da afirmação de Oliver Wendell Holmes, de que "quando as divergências são de grande alcance preferimos tentar matar o outro homem a deixá-lo praticar suas idéias". Na verdade, as populações das cidades em luta, dirigidas pelas associações de mercadores organizados, não eram revolucionárias, no sentido que emprestamos à palavra. Não lutavam para derrubar seus senhores, mas apenas para fazê-los abandonar algum as das práticas feudais já gastas pelo uso, que constituíram um estorvo decisivo à expansão do comércio. Não teriam escrito, como os revolucionários americanos, que "todos os homens foram criados livres e iguais". Nada disso. "A liberdade pessoal, por si só, não era exigida como direito natural. Era desejada apenas pelas vantagens que proporcionava. E tanto isso é verdade que em Arrás, por exemplo, os mercadores tentaram enquadrar-se na classe dos servos do Mosteiro de St. Vast, a fim de gozar da isenção das taxas de pedágio nos mercados, que havia sido concedida àqueles." As cidades desejavam libertar-se das interferências à sua expansão, e depois de alguns séculos o conseguiram. O grau de liberdade variava consideravelmente, de forma que é tão difícil apresentar um quadro geral dos direitos, liberdades e organização da cidade medieval quanto do feudo. Havia cidades totalmente independentes, como as cidades- repúblicas da Itália e Flandres; havia comunas livres com graus diversos de independência; e havia cidades que apenas superficialmente conseguiram arrebatar uns poucos privilégios de seus senhores feudais, mas na realidade permaneciam sob seu controle. Mas, fossem quais fossem os direitos da cidade, seus habitantes tinham o cuidado de obter uma carta que os confirmasse. Isso ajudava a evitar disputas, se alguma vez o senhor ou seus representantes por acaso se esquecessem desses direitos. Eis aqui o início de uma carta dada pelo Conde de Ponthieu à cidade de Abbeville, em 1184. Logo na primeira linha, o próprio conde apresenta uma, das razões por que os habitantes das cidades tanto prezavam as cartas e as guardavam cuidadosamente a sete chaves - por vezes chegando mesmo a transcrevê-las em letras de ouro, nos muros da cidade ou da igreja. "Como o que se deixa escrito fica mais bem guardado na memória humana, eu, Jean, Conde de Ponthieu, faço saber a todos os presentes, e aos que virão, que meu avô, Conde Guillaume Talvas, tendo vendido à cidade de Abbeville o direito de manter uma comuna, e não tendo a cidade uma cópia autenticada desse contrato de venda, concedeu-lhe... o direito de manter uma comuna e perpetuamente”.

Cento e oitenta e seis anos depois em 1370 os cidadãos de Abbeville passaram a ter um novo senhor, o próprio rei de França. Decerto, o movimento em prol da liberdade da cidade progredira rapidamente durante esse período, porque o rei, em ordem dada a seus funcionários, fora longe com suas promessas: "Concedemos e transmitimos certos privilégios, pelos quais fica patente, inter alia [entre outras coisas], que nunca, por qualquer motivo, ou ocasião que seja, fixaremos, manteremos, multaremos ou imporemos, nem seremos causa ou toleraremos que sejam fixados, mantidos, estabelecidos ou impostos na referida cidade de Abbeville, ou nas demais cidades do condado de Ponthieu, quaisquer imposições, ajudas, ou outros subsídios de qualquer natureza, se não se destinarem à renda das mencionadas cidades e a seu pedido... razão pela qual nós, considerando o amor e obediência sinceros a nós devotados pelos ditos suplicantes, ordenamos que permita a todos os burgueses, habitantes da referida cidade, comerciar, vender e comprar, e transportar através das cidades, países e limites do referido condado, sal e outras mercadorias de qualquer espécie, sem coagi-los a pagar-nos, ou a nossos homens ou empregados, quaisquer impostos de sal, reclamações, exigências imposições ou subsídios..." Essa isenção dos impostos concedida pelo rei de França no documento acima era apenas um dos privilégios pelos quais os mercadores se batiam. Na luta pela conquista da liberdade da cidade, os mercadores assumiram a liderança. Constituíam o grupo mais poderoso e lograram para suas associações e sociedades todos os tipos e privilégios. As associações de mercadores, com freqüência. exerciam um monopólio sobre o comércio por atacado das cidades. Quem não era um membro da liga de mercadores não fazia bons negócios. Em 1280, por exemplo, na cidade de Newcastle, na Inglaterra um homem chamado Richard queixou-se ao rei de que 10 tosquias de lã lhe foram tomadas por alguns mercadores. Queria sua lã de volta. O rei mandou chamar os tais mercadores e perguntou-lhes por que haviam tomado a lã de Richard. Estes alegaram em sua defesa, que o Rei Henrique III lhes concedera que "os cidadãos da referida cidade poderiam ter uma corporação  de Mercadores no dito burgo com todos os privilégios e isenções habituais. Indagados acerca dos privilégios que reivindicam como pertencentes à Corporação citada, declararam que ninguém, a menos que gozasse das imunidades da Corporação poderia cortar as peças de fazenda para vender na cidade, nem carne ou peixe nem comprar couros frescos, nem adquirir lã pela tosquia”... Richard, decerto, não era membro da sociedade, que desfrutava o direito exclusivo de comerciar com lã.

Em Southampton, ao que parece, os não-membros podiam adquirir mercadorias - mas à sociedade de mercadores cabiam os primeiros negócios e "nenhum habitante ou estrangeiro trocará ou comprará qualquer espécie de mercadoria que chegue à cidade, antes dos membros da Corporação dos Mercadores, e enquanto um membro da sociedade estiver presente e deseje trocá-la ou comprá-la; e se alguém o fizer e for considerado culpado, aquilo que comprar será confiscado pelo rei."

E exatamente como as associações de mercadores tentaram manter a distância os não-membros, foram igualmente bem sucedidas em conservar fora de seu comércio de província os mercadores estrangeiros. Seu objetivo único era possuir o controle total do mercado. Quaisquer mercadorias que entrassem ou saíssem da cidade tinham que passar por suas mãos. Devia ser eliminada a concorrência de fora. Os preços das mercadorias deviam ser determinados pelas associações. Em todas as fases do jogo, eram elas que desempenhariam o papel principal. O controle do mercado teria que ser seu monopólio exclusivo.

Claro está que, para exercer tal poder, a fim de conquistar esse monopólio do comércio nas diversas cidades, as associações de mercadores deviam ser influentes junto às autoridades. E eram. Como constituíam o grupo mais importante da cidade, os mercadores opinavam na escolha dos funcionários da cidade. Em algumas regiões, os funcionários estavam sob sua influência; em outras, eles próprios tornavam-se os funcionários; e ainda em umas poucas, a lei estipulava, expressamente, que apenas os membros das corporações podiam ocupar postos no governo da cidade. Era um caso raro, mas acontecia, como a prova o regulamento da cidade de Preston, na Inglaterra, redigido em 1328: "... nenhum dos cidadãos, feitos cidadãos por registro nos tribunais e fora da Corporação dos Mercadores, nunca será Alcaide, avalista ou funcionário, mas apenas os cidadãos cujos nomes estejam incluídos na Corporação dos Mercadores; porque o rei concede a liberdade aos cidadãos que integram a Corporação e a nenhum outro." As associações de mercadores, tão ávidas em obter privilégios monopolistas e tão observadoras de seus direitos, mantinham seus membros numa linha de conduta determinada por uma série de regulamentos que todos tinham de cumprir. O integrante da sociedade gozava de certas vantagens, mas só podia permanecer como membro se seguisse à risca as regras da associação. Estas eram muitas e rígidas. Rompê-las podia significar a expulsão total ou outras formas de punição. Um método particularmente interessante é o que adotava uma corporação em Chester, Inglaterra, há mais de 300 anos. Em 1614, a Companhia de Negociantes de Fazendas e Forrageiros, de Chester, ao descobrir que T. Aldersley violara suas normas, ordenou-lhe que fechasse a loja. Ele recusou. "Assim, todos os dias, dois outros [da companhia] caminhavam o dia todo diante da mencionada loja e impediam todos quantos se dirigiam à loja de aí comprar seus artigos e detinham os que iam comprar mercadorias." É lícito supor que o Senhor Aldersley não podia pôr termo a esses piquetes, obtendo um mandado contra eles, no estilo do século XX, porque a corporação era por demais poderosa. De fato, o poder das associações de mercadores não se limitava às suas próprias localidades, mas alcançava regiões distantes. A famosa Liga Hanseática da Alemanha é o exemplo vivo de uma aliança de sociedades numa poderosa organização. Possuía postos de comércio, que eram fortalezas, bem como armazéns, espalhados da Holanda à Rússia. Tão poderosa era essa liga que, no ápice do poder, contava com cerca de 100 cidades, que praticamente monopolizavam o comércio do Norte da Europa com o resto do mundo. Constituía um Estado em si, no qual estabelecia tratados comerciais, protegia sua frota mercante com navios de guerra próprios, limpava de piratas os mares do Norte e tinha suas assembléias de governo, que elaboravam suas próprias leis.

Os direitos que mercadores e cidades conquistaram refletem a importância crescente do comércio como fonte de riqueza. E a posição dos mercadores na cidade reflete a importância crescente da riqueza em capital em contraste com a riqueza em terras.

Nos primórdios do feudalismo, a terra, sozinha, constituía a medida da riqueza do homem. Com a expansão do comércio, surgiu um novo tipo de riqueza - a riqueza em dinheiro. No início da era feudal, o dinheiro era inativo, fixo, móvel; agora tornara-se ativo, vivo, fluido. No início da era feudal, os sacerdotes e guerreiros, proprietários de terras, se achavam num dos extremos da escala social, vivendo do trabalho dos servos, que se encontravam no outro extremo. Agora, um novo grupo surgia a classe média, vivendo de uma forma nova, da compra e da venda. No período feudal, a posse da terra, a única fonte de riqueza, implicava o poder de governar para o clero e a nobreza. Agora, a posse do dinheiro, uma nova fonte de riqueza, trouxera consigo a partilha no governo, para a nascente classe média.

A maioria dos negócios é hoje realizada com dinheiro emprestado, sobre o qual pagam juros. Se a United States Steel Company quiser comprar outra empresa de aço que lhe estiver fazendo concorrência, provavelmente tomará emprestado o dinheiro. Poderá conseguir isso emitindo ações que são simplesmente promessa de devolver, com juros, qualquer soma de dinheiro que o comprador de ações empreste. Quando o dono da loja da esquina pretende adquirir coisas novas para seu negócio, vai ao banco tomar emprestado o dinheiro. O banco empresta determinada importância, cobrando juros. O fazendeiro que quiser comprar uma terra adjacente à sua fazenda pode hipotecar sua propriedade para conseguir o dinheiro. A hipoteca é simplesmente um empréstimo ao fazendeiro sob juros anuais. Estamos tão acostumados a esse pagamento de juros pelo dinheiro emprestado que tendemos a considerá-lo "natural", como coisa que tenha existido sempre.

Mas não existiu. Houve época em que se considerava crime grave cobrar juros pelo uso do dinheiro. No principio da Idade Média o empréstimo de dinheiro a. juros era proibido por uma Potência, cuja palavra constituía a lei para toda a Cristandade. Essa potência era a Igreja. Emprestar a juros, dizia ela, era usura, e a usura era PECADO. A palavra vai em letras maiúsculas porque assim era considerado qualquer pronunciamento da Igreja naquela época. E um pronunciamento que ameaçasse com a danação eterna aqueles que o violavam, tinha particular importância. Na época feudal, a influência da Igreja sobre o espírito do povo era muito maior do que hoje. Mas não era apenas a Igreja que condenava a usura. Os governos municipais e mais tarde os governos dos Estados baixaram leis contra ela. Uma "lei contra a usura"' aprovada na Inglaterra dizia: "Sendo a usura pela palavra de Deus estritamente proibida, como vicio dos mais odiosos e detestáveis proibição essa que nenhum ensinamento ou persuasão pode fazer penetrar no coração de pessoas ambiciosas, sem caridade e avarentas deste Reino fica determinado que nenhuma pessoa ou pessoas de qualquer classe, estado, qualidade ou condição, por qualquer meio corrupto, artificioso ou disfarçado, ou outro, emprestem, dêem, entreguem ou passem qualquer soma ou somas de dinheiro para qualquer forma de usura, aumento, lucro, ganho ou juro a ser tido, recebido ou esperado, acima da soma ou somas dessa forma emprestadas sob pena de confisco da soma ou somas emprestadas bem como da usura e ainda da punição de prisão." Essa lei era um reflexo do que a maioria das pessoas na Idade Média pensava sobre a usura. Concordavam em que era um mal. Mas, por quê? Como surgira essa atitude para com o juro? Devemos procurar nas relações da sociedade feudal a resposta.

Naquela sociedade, onde o comércio era pequeno e a possibilidade de investir dinheiro com lucro praticamente não existia, se alguém desejava um empréstimo, certamente não tinha por objetivo o enriquecimento, mas precisava dele para viver. Tomava o empréstimo simplesmente porque alguma desgraça lhe ocorrera. Talvez lhe morresse a vaca, ou a seca lhe tivesse arruinado as colheitas. Estava em má situação e necessitava de ajuda. De acordo com o sentimento medieval, a pessoa que, nessas circunstâncias, o ajudasse, não deveria lucrar com sua desventura. O bom cristão ajudava o vizinho sem pensar em lucro. Se emprestava a alguém um saco de farinha, esperava receber de volta apenas um saco de farinha, e nada mais. Se recebesse mais, estaria explorando o companheiro - o que não se considerava

justo. O justo era receber apenas o que se emprestara, e nada mais nem menos. A Igreja ensinava que havia o certo e o errado em todas as atividades do homem. O padrão do que era certo ou errado na atividade religiosa não diferia das demais atividades sociais ou, mais importante ainda, do padrão das atividades econômicas.

As regras da Igreja sobre o bem e o mal aplicavam-se a todos os setores, igualmente.

Hoje em dia, é possível fazer,. num negócio comercial, a um estranho, o que não faríamos a um amigo ou vizinho. Temos padrões diferentes para os negócios, e que não se aplicam a outras atividades. Assim, o industrial fará tudo ao seu alcance para esmagar um concorrente. Venderá com prejuízo, se empenhará numa guerra comercial, conseguirá descontos especiais, tentará todos os recursos possíveis para encurralar seu rival. Essas atividades arruinarão o competidor. O industrial ou comerciante sabe disso, mas não obstante continua a realizá-las, porque "negócio é negócio". No entanto essa mesma pessoa não permitiria, nem pois um minuto, que um amigo ou vizinho passasse fome. Essa existência de um padrão para a atividade econômica e outra pura a atividade não-econômica era contrária aos ensinamentos da Igreja na Idade Média. E a maioria das pessoas acreditava geralmente nos ensinamentos da Igreja.

A Igreja ensinava que, se o lucro do bolso representava a ruína da alma, o bem-estar espiritual é que estava em primeiro lugar. "Que lucro terá o homem, se ganhar todo o mundo e perder sua alma?" Se alguém obtivesse numa transação mais do que o devido, estaria prejudicando a outrem, e isso estava errado. Santo Tomás de Aquino, o maior pensador religioso da Idade Média, condenou a "ambição do ganho". Embora se admitisse, com relutância, que o comércio era útil, os comerciantes não tinham o direito de obter numa transação mais do que o justo pelo seu trabalho.

Os homens da Igreja na Idade Média teriam condenado fortemente o intermediário que, alguns séculos mais tarde, se tornara, segundo a definição de Disraeli, "um homem que trapaceia de um lado e saqueia do outro". A moderna noção de que qualquer transação comercial é lícita desde que seja possível realizá-la não fazia parte do pensamento medieval. O homem de negócios bem sucedido de hoje, que compra pelo mínimo e vende pelo máximo, teria sido duas vezes excomungado na Idade Média. O comerciante, porque exercia um serviço público necessário, tinha direito a uma boa recompensa e a nada mais do que isso.

Também não se considerava ético acumular mais dinheiro do que o necessário para a manutenção própria. A Bíblia era clara quanto a isso: "Ë mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus." Um autor da época assim se manifestou: "Quem tem o bastante para satisfazer suas necessidades, e não obstante trabalha incessantemente para adquirir riquezas, seja para conseguir uma posição social melhor, seja para viver mais tarde sem trabalhar, ou. para que seus filhos se tornem homens de riqueza e importância - todos esses estão dominados por uma avareza, sensualidade ou orgulho condenáveis." Os que estavam habituados aos padrões de uma economia natural simplesmente aplicaram tais padrões à nova economia monetária em que se viram. Assim, se alguém emprestava a outro cem libras, julgava-se que tinha o direito moral de exigir de volta apenas cem libras. Quem cobrasse juros pelo uso do dinheiro estaria vendendo tempo, e tempo não pertence a ninguém, para que possa ser vendido. O tempo pertence a Deus, e ninguém tinha o direito de vendê-lo.

Além disso, emprestar dinheiro e receber de volta não apenas o total emprestado, mas também um juro fixo, significava a possibilidade de viver sem trabalhar - o que estava errado. (Pelo pensamento medieval, os sacerdotes e guerreiros estavam "trabalhando" nas ocupações para as quais estavam habituados. Alegar que o dinheiro é quem trabalhava para seu dono seria apenas irritar os homens da Igreja. Teriam respondido que o dinheiro era estéril, não podia produzir nada. Cobrar juros era totalmente errado - dizia a Igreja).

Isso é o que ela dizia. O que dizia e o que fazia, porém, eram duas coisas totalmente diferentes. Embora os bispos e reis combatessem e fizessem leis contra os juros, estavam entre s primeiros a violar tais leis. Eles mesmos tomavam empréstimos, ou os faziam, a juros - exatamente quando combatiam outros usurários! Os judeus, que geralmente concediam pequenos empréstimos a juros enormes porque corriam grande risco, eram odiados e perseguidos, desprezados em toda parte como usurários. Os banqueiros italianos emprestavam dinheiro em grande escala, fazendo negócios enormes - e freqüentemente, quando seus juros não eram pagos, o próprio Papa ia cobrá-los, ameaçando com um castigo espiritual! Mas a despeito do fato de ser um dos maiores pecadores, a Igreja continuava a gritar contra os usurários.

Ë fácil ver que a doutrina do pecado da usura iria limitar os processos do novo grupo de comerciantes que desejava negociar numa Europa em expansão comercialmente. Tornou-se na verdade um obstáculo quando o dinheiro começou a ter um papel cada vez mais importante na vida econômica.

A nascente classe média não guardava seu dinheiro em caixas-fortes. (Esse hábito pertence ao período feudal, quando eram limitadas as oportunidades de investimento.) O novo grupo de mercadores podia empregar todo o dinheiro de que dispusesse e mais ainda. Para manter seu negócio, para ampliar o campo de suas operações e aumentar os lucros, o comerciante precisava de mais dinheiro. Onde obtê-lo? Podia recorrer aos que emprestavam, aos judeus, como Antônio, o Mercador de Veneza, recorreu a Shylock, o Judeu. Ou podia procurar comerciantes maiores - alguns dos quais haviam deixado de comerciar com mercadorias para comerciar com dinheiro - e que eram os grandes banqueiros do período. Não era fácil, porém. Essa lei da Igreja barrava o caminho, proibindo aos banqueiros ou usurários o empréstimo a juros.

Que aconteceu então, quando a doutrina da Igreja, destinada a uma economia antiga, chocou-se com a força histórica representada pelo aparecimento da classe de comerciantes? Foi a doutrina quem cedeu. Não de uma só vez, evidentemente. Lentamente, centímetro por centímetro, nas novas leis que diziam: "A usura é um pecado - mas, sob certas circunstâncias”..., ou então: "Embora seja pecado exercer a usura, não obstante em casos especiais”...

Os casos especiais que neutralizavam a doutrina da usura são esclarecedores. Se o banqueiro B emprestasse dinheiro ao comerciante M, não estava certo que cobrasse juros pelo empréstimo. Mas, dizia a Igreja, como o comerciante M ia usar o dinheiro que tomara emprestado do banqueiro B para uma aventura comercial na qual toda a importância poderia ser perdida, era então justo que M devolvesse a B não - só o que lhe tomara emprestado, mas também um pouquinho mais para compensar B do risco que correra.

Ou então, se o banqueiro B tivesse guardado o dinheiro, poderia tê-lo empregado para obter lucro, sendo por isso justo que o comerciante M ao devolver o empréstimo pagasse um pouco mais, para compensar ao banqueiro a não-utilização do dinheiro.

Dessa e de outras formas, a doutrina da usura foi medicada, para atender às novas condições. É bastante significativo que Charles Dumoulin, advogado francês que escreveu no século XVI, tenha alegado a "prática comercial diária como justificativa para a legalização de uma "usura moderada e aceitável". Eis aqui sua argumentação: "A prática comercial diária mostra que a utilidade do uso de uma soma considerável de dinheiro não é pequena nem permite dizer que o dinheiro por si não frutifica; pois nem mesmo os campos frutificam sozinhos, sem gastos, trabalho e indústria dos homens; o dinheiro, da mesma forma, mesmo quando deve ser devolvido dentro de um prazo, proporciona nesse período um produto considerável, pela indústria do homem. E por vezes priva a quem empresta de tudo aquilo que traz a quem o toma emprestado. Portanto, toda a condenação, todo o ódio à usura, deve ser compreendido como aplicável à usura excessiva e absurda, não à usura moderada e aceitável."“

Assim, aos poucos foi desaparecendo a doutrina da usura da Igreja, e a pratica comercial diária" passou a predominar. Crenças, leis, formas de vida em conjunto, relações pessoais tudo se modificou quando a sociedade ingressou em nova fase de desenvolvimento.


Veja também:

O NOME DA ROSA

O Nome da Rosa de Umberto Eco: Análise da Obra O Nome da Rosa  é um livro de 1980 escrito pelo italiano Umberto Eco. Em 1986 foi lançado o...

Não deixem de visitar, Blog do Maffei recomenda: